Era inverno, um desses dias de inverno em que
o sol também desponta, como a querer anunciar que, logo que ele se vá embora,
chegará a primavera. E nesse dia de inverno, apesar do sol que se abria em
sorrisos contagiantes, o frio também se fazia sentir. Era só ver como as
pessoas andavam tão vestidas, mas tão vestidas, que delas só se lhes via o
rosto! Eram casacões, eram botas, eram gorros, eram lenços, eram luvas, sei lá
mais o que as pessoas usavam para esquecerem o frio.
E quem assim observava e assim cogitava era o
Lírio Roxo que, mesmo neste frio resolvera sair para o jardim onde, até então,
descansara como broto no rizoma debaixo da terra. Tinha tido um sonho (ele nem
sabe bem se foi um sonho) que lhe dizia para acordar, para sair da terra. E,
como este era um Lírio aventureiro, fez a vontade ao sonho (não, que ele fosse
um “lírio mandado”, não , ele fez a vontade ao sonho, porque quis descobrir
como seria acordar antes do tempo dos lírios acordarem no jardim!)
Estava
nestes pensamentos quando sentiu um toque, uma espécie de carícia no rosto, de alguém
que lhe sussurrava:
- Bom dia, amigo! O dia está lindo, o sol
convida à alegria, à Vida, não é verdade? Foi por isso que resolveste aparecer?
É que tu não costumas estar por aqui nesta época do ano, já não te via há muito
tempo!
- Olá, Rosa Amarela! Também já acordaste?! –
e, sorrindo, continuou -É verdade, tive um sonho engraçado, penso que foi um
sonho, mas nem sei...! estava eu bem deitadinho na minha cama-rizoma quando
ouvi a voz do sol: «Acorda, olha que eu
vou iluminar o jardim, e desafio as flores mais corajosas a sairem... tens
coragem para sair e desfrutar das maravilhas da natureza fora do teu tempo?
» Eu não respondi, mas pensei: «Claro
que tenho!”» e, mal pensei, logo me levantei, espreguicei e... aqui estou!
- Pois – continuou a Rosa Amarela – também eu
ouvi o chamamento, ainda estava botão muito apertadinho, mas ao ouvir tal
desafio, logo me espreguicei e abri!
- Psiu, psiu! – murmurou uma vozinha mesmo
ali junto ao solo.
Intrigados, o Lírio e a Rosa logo desviaram o
olhar para ver quem seria desta vez. E não é que era o Amor-Perfeito que também
saíra fora do seu tempo!
Agora, e já com ânimo triplicado (eram três
flores aventureiras!), mal cabendo em si de contentes, olhavam admiradas umas
para as outras, até que o Lírio sugeriu:
- Ora, já que é dia de aventura, que seja uma
aventura! E se fôssemos até à praia?
- Mas como é que vamos, se estamos presas
pelos caules, a não ser que alguém nos colha e nos leve daqui - disse o
Amor-Perfeito
E, no instante em que o Amor-Perfeito acabou
de falar, um jovem rapaz que por ali passava com a sua namorada, baixou-se, colheu o amor-perfeito e ofereceu-o à jovem.
-Que lindo!- disse a menina – E olha aquela
rosa, tão bonita, tão viçosa, radiante como o sol! Vou levá-la também, ficará
linda na minha jarra!
- E este lírio? Não vamos deixá-lo aqui
sozinho, sozinho fica triste. Tu ficas com a rosa e o amor-perfeito, eu fico
com o lírio...
- Não, não vamos separá-los, ficam juntinhos,
arranjarei maneira de não os separar. Agora vamos..., aonde vamos?
- E se fôssemos até à praia, andar um
bocadinho na areia, ouvir o mar, que te parece, António?
- Acho uma boa ideia! Vamos então até à
beira-mar!- respondeu António.
(Eu penso que
a Marlene – assim se chamava a namorada do jovem António - entende a
linguagem das flores, ela deve ter ouvido a sugestão do amor-perfeito, não
acham?)
E lá foram abraçadinhos (não se sabe se por
causa do frio, se magnetizados pelo amor) até à praia. Aí chegados tiraram
botas e meias, arregaçaram as calças e preparavam-se para uma corrida na areia.
- Não podemos correr com as flores, temos que
as proteger da deslocação do ar enquanto corrermos. Vou deixá-las aqui junto do
nosso calçado – sugeriu Marlene.
E, enquanto António olhava e pensava para que
lado correriam, se para norte, se para sul, Marlene desenhou um grande coração
na areia e deixou dentro dele as três flores. Esta seria a maneira mais
original e mais pura de lhes dizer o quanto delas gostava. Mas não foi só isso,
ela sentiu-se Rosa Amarela, e achou que o António podia ser o Amor-Perfeito.
Ainda pensava, embebecida, na ternura de ser Rosa e do seu António ser Amor-Perfeito
quando ouviu o lírio que, numa vozinha quase sumida perguntou: «E eu? Também
quero ser alguém, mais do que uma simples flor..., ou será que não mereço?»
Então Marlene abriu ainda mais o coração e
segredou:« Não fiques triste, meu Lírio Roxo, tu ficas mesmo bem como “sendo a
minha irmã Maria”. Olha, até lhe vou telefonar e convidá-la a vir ter connosco e,
se não te importares, ofereço-te a ela, pois sei que, no mundo das flores, és a
sua favorita.»
E, ainda não tinha acabado de formular o
pensamento já Maria estava no areal. Não precisou sequer de telefonar. Talvez
os seus pensamentos se cruzassem, não sei bem, mas sei que entre Maria e as
flores, bastava o pensamento para que comunicassem. Até é bem possível que
entre Marlene e Maria também tenha acontecido assim!
Ora já estava tudo preparado, já podiam andar
ou correr na areia, mas Maria preferiu ficar ali sentada absorvendo a maresia,
deixando os nossos pombinhos desfrutar de uma corrida pela praia.
Ali sentada olhava enternecida as três
flores, feliz por saber que aquele Lírio Roxo iria com ela. Pensando nesta
suave e doce alegria, parou o seu olhar bem no centro do coração. Havia
qualquer coisa de diferente ali, que chamou a sua atenção. As flores pareciam
luminosas, luminosas ou iluminadas, ela nem sabia bem definir o que via... Então,
muito atentamente, fixou o centro desse coração, sentindo-se mergulhar nele,
sentindo-se também envolta pela mesma luz que agora brilhava ainda mais
intensamente. Já não era só ela e as flores, nesse coração de luz estavam todas
as flores, todas as pessoas, todas... tudo! E desse “tudo”, emanava o amor, a
beleza, a sabedoria, a paz... «Que coisa linda!», pensou Maria.
- Eh! Maria, acorda! Não se deve dormir na
praia, por acaso não é verão, não está calor, caso contrário bem podias apanhar
um escaldão!
- Sabes mana? Parece que viajei até ao
coração do Universo! Parece, não! Mesmo que tenha sido a sonhar, eu estive lá,
estive eu e estiveram vocês. E vi com
quanto amor, quanta beleza, quante sabedoria, quanta paz ele nos abraça
diariamente! E soube que tu e o António não estão juntos por acaso, vocês são
complemento um do outro.
Agora estas três flores, além de flores, são
a essência das três pessoas a quem estão tão intimamente ligadas.
E o jardim, mesmo sem elas, está prestes a
desabrochar com mais surpresas para fazer as delícias dos namorados ( e não só),
uma vez que o tempo já vai a caminho da Primavera.
De Maria La-Salete Sá