sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

NUMA NOITE DE LUA CHEIA


Numa noite de lua cheia, em que tudo pode acontecer, as areias das dunas e o passadiço da praia ganharam vida. 
Cansado de ser pisado, o passadiço queixou-se às dunas:
- Motel Tentações! É isso! Vou mudar-me daqui e vou passar uma noite em beleza! Qual das dunas quer vir comigo?
Mal o passadiço tinha acabado de fazer a sugestão, vogando na crista de uma tremenda onda que ali chegava com uma fúria tempestuosa, a estrela do mar dizia:
- Espera, espera, leva-me contigo, eu que sou… E não acabou o que ia dizer (“… uma estrela sem brilho, mas a precisar de brilhar…”), porque, saída do meio da areia da mais alta duna, apareceu uma sereia, um tanto ou quanto maltrapilha, diga-se de passagem, a gritar a todos os pulmões:
- Eh! Eh! Não dês ouvidos a essa lambisgoia da Estrela, que nem sequer é uma estrela, mas sim um ouriço, que aproveitou o fascínio desta lua cheia, rezou o feitiço e quer fazer-se passar por uma “pobre estrela em busca do brilho”! Vejam lá ao que chega o descaramento!
Mas… quem és tu?! Uma aberração de peixe saído da areia?!... Não pode ser! - disse o passadiço.
- Quem sou?! Quem sou?! Mas que atrevimento! Peixe, eu?! Aberração?! Eu?! Eu, a sereia Bonitona?! É preciso alguém ter muita lata, ser muito cara de pau para me afrontar desta maneira! Eu, a sereia mais badalada de todos os oceanos, eu que apareço em todas as revistas da atualidade, eu que sou o maior ícone da beleza?!...
E, não podendo mais com tamanha humilhação, em vez de verde de raiva, ficou vermelha que nem um pimento, tal era a sua fúria, de vermelho passou a roxa de tanto gritar a sua indignação e, finalmente deixou-se cair em cima do passadiço, branca como a cal, desfeita em lágrimas, sem saber muito bem porque chorava, tantas e tão diversas eram as emoções…
- Desculpa lá, Bonitona, não te quis ofender, mas assim… (ele queria dizer “com areia na cabeça em vez de miolos”, mas emendou) com a cabeça cheia de areia, com algas enroladas na cabeça, com o rabo de peixe a dar a dar, mais parecias um vulgar peixe do que uma bela sereia…
- Bem, estás desculpado, mas realmente hoje, nesta bela noite de lua cheia apetece-me sair do mar, ir em debandada, ser ou ficar enfeitiçada, sei lá! – disse Bonitona já mais calma.
- E queres mesmo ser sereia? É que hoje, com esta lua cheia, esta lua especial, tudo pode acontecer, ai pode, pode! 
- Eu sei, é por isso que aqui estou. Hoje sou sereia, sou brisa, sou rio cantante, sou folha esvoaçante, sou… TUDO, tudo o que quiser ser e que a lua me deixe ser e fazer.
- Mas, na verdade eu nem sei se tu és mesmo sereia, ou se já aproveitaste alguma gota de raio de luar para te transformares em sereia! És?
- Não, sou apenas um desejo de querer ser sereia, de ser aquela sereia dos meus sonhos, a Bonitona! Assim linda de morrer, comentada, admirada!
E logo a lua, sempre atenta ao que se passava, respondeu:
- O que realmente quero para ti, sereia Bonitona, é que sejas tudo menos tu, menos o que tu és, ou o que tens pretensão de ser.
- Como assim, podes explicar-me?
- Pois, já reparaste que só falas de ti? Da tua beleza, de como falam e olham para ti, só de ti, só de ti…? É que tu és tudo menos isso! Tu és um desejo de ser sereia, mas uma sereia não apenas para ser admirada e bajulada, mas para espalhares amor, sorrisos de harmonia, felicidade. Tu nasceste para saíres de ti, para seres e viveres em partilha de afetos, de emoções… Tu não és um produto, tu és alguém!
- Tens razão… tenho sido muito vaidosa, muito arrogante, mas posso ir pernoitar no Motel Tentações? Quem sabe aí eu não possa ser Cupido de alguém…?!
- Sim, claro que podes, vais com o passadiço (até fazem um par simpático! – disse de si para si a Lua), mas levem a duna também e metam-na na ampulheta, ela alertar-vos-á na hora do regresso.
E lá foram os três para o Motel Tentações. O passadiço, porque teve que carregar com a duna e a sereia, que não pararam de saltar e brincar de tão contentes que iam, mal caiu na cama, adormeceu. A duna entrou logo na ampulheta e a sereia, depois de arranjada deixou-se ficar diante do espelho a escovar os seus longos cabelos, totalmente despreocupada.Estava tão entretida que não reparou no jovem casal que entrou no quarto (ela altiva, ele tristonho), só se dando conta da sua presença quando…
- Que queres que eu faça, minha princesa? – disse o cavalheiro.
- Ora, ora, Camilo, tu sabes muito bem o que eu quero. Quero que admires a minha beleza, quero que sejas meu servo, quero que me deixes brilhar sempre por onde passar, quero…
- Mas isso já eu faço. Sabes o quanto te amo, sabes que casei por amor, minha querida Orquídea Maria! – respondeu o jovem Camilo, agora com um sorriso de felicidade estampado no rosto.
E continuou:
- Vem, meu amor, vem, deixa-me beijar-te com sofreguidão, sorver o teu néctar, minha querida Orquídea!
- O quê?! Como te atreves? Os meus lábios não são para servos, e para ti, se teimares em ter-me, sabes que sou uma orquídea, sabes que há orquídeas que fabricam veneno, eu sou uma delas, posso até tirar-te a voz, posso silenciar-te… Olha, vai mas é dormir e deixa-me sossegada a escovar os meus lindos cabelos.
Acabrunhado, Camilo deitou-se, mas não conseguia dormir… Aquele amor tão grande que desde muito novo começou a nutrir pela bela Orquídea, em vez de felicidade só lhe trazia dor, tristeza, desalento…
E, como era a noite mágica da lua cheia, a sereia desta história que estava sentada em frente do espelho a escovar os cabelos, tornara-se invisível. Não se sabe se ficara invisível pela magia da lua cheia ou por ser apenas um desejo de ser sereia (os desejos às vezes ganham forma e vida), mas… desejo ou sereia, só passadiço, duna e desejo sabiam que ali estavam; para o jovem casal estes três personagens não existiam – e ainda bem, senão onde se deitaria o jovem Camilo?! Eu até penso que tudo aconteceu por feitiço da Lua!-. Mas, fosse como fosse os nossos amigos souberam logo que a sua presença não seria notada.
Ao sentir alguém deitado na sua cama o passadiço esgueirou-se para junto do desejo e da ampulheta (que já tinha deixado passar quase metade da areia da duna!) e comentou:
- Pobre Camilo! Tem um sentimento tão puro, mas é rejeitado em prol de honrarias e beleza fictícia… que pena tenho dele!
E, como que atingido por um raio, o nosso desejo de sereia alojou-se no coração da jovem Orquídea que, de imediato, desatou num grande pranto, ao mesmo tempo que cobria de beijos o atónito Camilo!
- Perdoa, meu querido, perdoa esta tonta! Não quero honrarias, não quero bajulações, quero e preciso do teu amor!
- Mas… Não, não me iludas, não me mintas, não finjas que me queres para me rejeitares de seguida, não, por favor, não…
- Não, meu amor! É verdade o que te digo. Não sei o que foi, mas algo se passou neste quarto, algo que vi e senti. Não me digas que não viste o raio de luar que entrou pela janela e passou para dentro do espelho… Não viste mesmo nada?
- Não, mas então conta-me, conta…
- Estava, como sabes, a olhar para o espelho. De repente vejo ali mesmo colada à janela a lua cheia. Parecia querer dizer-me alguma coisa, mas o que aconteceu é que um jato de luz dela saiu e atravessou o espelho e a imagem que nele vi foi a de uma Orquídea muito feia, muito sombria, sem amor, sem felicidade, sem harmonia…, vi uma Orquídea malévola, arrogante, vaidosa… e não gostei de mim… E, logo no mesmo instante, senti que o amor verdadeiro despertou, que realmente és tu, meu amor, meu marido, meu companheiro que quero para toda a vida. E sabes o que penso? 
- Não, diz-me…
- Penso que algum feitiço caiu em cima de mim que me impedia de ver, de sentir e de saborear o amor… e penso que hoje, nesta noite de lua cheia, uma dessas noites em que tudo pode acontecer, alguém se lembrou de mim, de nós, e me desfez o feitiço. Agora sei que não haverá nada a separar-nos!Mal acabou de dizer isto, já a duna tinha passado para a parte de baixo da ampulheta, anunciando a hora do regresso. O passadiço meteu então os pés ao caminho, sentou o desejo (agora já uma linda e meiga sereia) nas suas travessas de madeira, aconchegou a areia e, numa viagem à velocidade do pensamento logo, logo estavam em casa, a sereia nas verdes águas do mar de Espinho, o passadiço a espreguiçar-se entre Gaia e Espinho e a duna a descansar no parque da Aguda, felizes por terem sido obreiros de harmonia, de união, de amor.
E não é que até a triste estrela do mar (que afinal nem era ouriço!), mesmo sem pernoitar no Motel Tentações também ganhou brilho?


De Maria La-Salete Sá (escrito "de acordo" com o acordo ortográfico)(17/01/2013)G

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